Indiferença diante do sofrimento humano decorre de mentiras históricas e ilusões sobre o alcance de nossa empatia.
Texto intimista revela reflexões sobre felicidade real versus aparência nas redes sociais e a busca por equilíbrio.
Hoje, nossa casa tem um cheiro gosto entre incenso “de igreja” (é como me vendem as pedrinhas na lojinha do Santuário) e amaciante de roupas. Apesar de jamais ter ouvido qualquer reclamação sobre fedor de cigarros aqui, sinto que aquela fumaça podre se havia impregnado a longo prazo. Parei de fumar.
Quando contei a Racca sobre o uso de adesivos contra o tabagismo, ele respondeu com uma gargalhada gostosa, disse “depende de onde se cola”. Logo imaginei a boca tapada por fita crepe. Teria sido mais barato que comprar remédio.
Sinto sua falta em todos os intervalos do meu dia. Enquanto encho a caneca de café, ou vou ao banheiro, ou nos caminhos de ida e volta para o almoço, ou quando tenho a ousadia cozinhar (se depender de mim, viveremos a base de coisas simples de preparar) — basicamente, meu dia são essas atividades intercaladas por trabalho —, só penso em você.
De uns anos para cá, caí em uma cilada terrível de parecer uma pessoa feliz. Isto é, acho que tomei por verdade a ideia de fazer coisas complexas, que demandam um tanto e meio de inteligência, como quem brinca com uma “mola-maluca” (lembra da mola-maluca?).
De qualquer maneira, não acho que os graus de dificuldade das coisas sejam assunto, embora eu esteja contando isso para você agora.
No geral, mulheres e homens que têm vivência profissional agem assim, mas não “enfeitam o pavão”. A cilada não é ter “autoestima humilde” (estou lendo um livro do Michel Esparza que é um soco na boca do orgulho), mas achar que tenho o desapego, a auto-suficiência, a felicidade do Instagram. Não tenho, você sabe — risos. Sei que uma parte do que você gosta em mim tem a ver com isso, de qualquer modo. Se eu pudesse, ficava só com você.
Por enquanto, as duas pesquisas que toco, em duas universidades, tomam uma energia descomunal do meu raciocínio. Em uma, sou convidado a olhar para o mundo de um jeito “desamparado”, que é na filosofia. Em outra, estamos todos em uma área de estudo nova e parece que ninguém sabe exatamente para onde está indo (e é exatamente esse o “campo”, a instabilidade da comunicação).
Não vejo a hora de encontrar você para não fazermos nada além das coisas que já fazemos, só que inteiros porque não nos faltamos. Sonho com você me dizendo que foda-se o Instagram.
Espero você sempre. Um beijo.
Leia insights sobre a interação de humanos com modelos de linguagem de IA, e sobre os ODS no Brasil. Lab Educação 2050 Ltda, que mantém este site, é signatária do Pacto Global das Nações Unidas.
Afastar-se das aparências on-line reforça escolhas saudáveis e fortalece o desenvolvimento humano.
Livrar-se do tabagismo e repensar hábitos favorece vida plena e melhora a convivência social.
Indiferença diante do sofrimento humano decorre de mentiras históricas e ilusões sobre o alcance de nossa empatia.
Este artigo não é exatamente esperançoso, se lido às pressas. Ele tende a fazer mais sentido quando, pela conversa difícil, conquistamos alguma liberdade para pensar e agir sobre as guerras sem a interferência dos exércitos. Afinal, não há nada que os que promovem a guerra possam fazer pela paz.
Lembro de minhas primeiras aulas sobre Segunda Guerra. Bem, como esquecê-las. À época, achava nem um pouco atraente saber em que anos ela tinha começado e terminado. Considero que as datas faziam pouco sentido para mim devido minha inexperiência de relacionar eventos. Além do mais, minha pouca idade não diferenciava o que cabe em um, dez, ou cem anos.
Em linhas gerais, e para efeito de prova, a Segunda tinha vindo depois da Primeira. E se chamava mundial porque aqueles que a chamaram assim consideravam que o mundo inteiro se resumia a eles. Conhecimento de Ensino Fundamental que vale para a atualidade.
Abre parênteses. Quem passou pelos anos noventa sabe que, em termos de IML, gente atropelada, esfaqueada, cadáveres em putrefação, a televisão nos abasteceu abundantemente com imagens violentas. Na cidade onde eu cresci, uma mulher afogou os dois filhos em um poço, e depois se jogou também. No programa do almoço, assisti aos corpinhos que boiavam. Outro caso foi o da filha que, com a ajuda da namorada, matou a mãe, e a vó. Sem contar o estupro, assassinato e roubo empreendidos contra uma idosa que morava sozinha na Rua XV.
No fim das contas, os que morriam e os que matavam tinham algum parentesco com alguém próximo. Eram, de todo modo, degenerados, não contavam exatamente como gente. Isso sem contar os casos nacionais, Chacina da Candelária, Daniella Perez, Índio Galdino. Fecha parênteses. Este é meu argumento: fica difícil impressionar uma criança brasileira.
Aqueles homicidas comuns, embora perigosíssimos, tinham praticado seus crimes de sorrate. Foram descobertos, e, depois, televisionados, presos, linchados, ou mortos pela polícia. Mas o que nos contavam sobre os campos de extermínio era totalmente diferente, e muitas vezes mais assustador. Tinha algo de errado em multidões assassinadas à luz do dia.
O que sabemos sobre o genocídio de judeus está marcado em preto e branco em nossas memórias, tanto pelas fotos quanto pela brilhante obra cinematográfica A lista de Schindler (1993) dirigida por Steven Spilberg. Graças às novas tecnologias, parte dessas memórias podem nos tocar ainda mais profundamente. A partir da reunião de recursos digitais, eu mesmo colori uma foto de crianças sobreviventes de Auschwitz tirada por Alexander Vorontsov.
É difícil olhar para elas e dizer: “nós desprezamos suas famílias ao máximo, escolhemos quem seria escravizado e quem seria morto e incinerado em nossas quatro câmaras de gás com crematórios”. Porque foi exatamente o que, no papel de humanos, fizemos. Tomar a responsabilidade por aquela desgraça é uma dor para a toda a vida, e não acho que haja qualquer outro jeito de lidar com ela senão carregá-la, com vergonha e arrependimento, até o último dia.
Encarar a inumamidade não é, porém, o mesmo que estagnar para a lamúria. É exatamente o contrário. E, para andarmos o mínimo necessário, temos de nos desfazer de duas ilusões convenientes. A primeira é de que toda responsabilidade pode ser atribuída ao Führer. Sejamos, ainda que isso nos incomode em níveis quase insuportáveis, coerentes. Nenhum homem seria capaz de empreender sem ajuda o Terceiro Reich. Em 1935, o Partido Nazista promulgou as leis de discriminação racial, e o Sr. Bigode não estava sozinho – como se pode comprovar pela filmagem oficial.
A outra ilusão clássica é a de que o “mundo” da Segunda Guerra Mundial não impediu o genocídio simplesmente porque não sabia de nada. Ora. Ao pensar melhor, nem acho mais que se trate de uma ilusão – uma vez que nem toda ilusão é necessariamente um equívoco – , mas de uma mentira deslavada. Com a ilusão, conquistamos certo alívio psíquico, que frequentemente se converte em prazer orgulhoso: “eu jamais teria feito algo assim”. Com a mentira, mantivemos a ideia de que temos um poder que, em verdade, não temos.
Desde a Guerra do Golfo, mais um ridículo dos anos noventa, conflitos militares internacionais passaram a ser também programas de televisão. Não se trata de uma figura de linguagem. Literalmente, as guerras são simultaneamente programas de televisão. É preciso ter pouca inteligência – às vezes nem essa eu alcanço – para compreender que as imagens que consumimos são realizações de uma pessoa. Alguém segura a câmera, escolhe quando apertar REC, quando parar, em que posição se verá o que ele vê, o que entra ou não no quadro. No caso de uma geração por inteligência artificial, alguém terá de escrever o prompt.
Desse jeito, o produto midiático da guerra integra o arsenal geral da guerra. Quem tem mais ou menos recursos para criar e propagar estórias tem, por consequência, mais ou menos poder bélico. É justo perguntar qual é o alcance de destruição de uma arma dessa estirpe. Desde a constituição espontânea de uma esfera pública, e sua progressiva e irreversível decadência, a opinião pública é utilizada para legitimar ou não as ações do Estado. Se convenço o Brasil de que sou “do bem” e que o outro é “do mal”, então os brasileiros tendem a pressionar seus governantes numa direção específica, cujo produto varia de apoio nas redes sociais digitais a proposições no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Contar a melhor estória, porém, não tem nada a ver com contar a história mais precisa. Esse critério de qualidade está restrito a cidadãos que não se comovem facilmente com os apelos das massas – gente que, em cada círculo social, pode ser contada nos dedos de uma mão.
A caminho dos finalmente. Então, se o mundo soubesse do aniquilamento de humanos na Segunda Guerra teria agido para proteger os judeus. Garanto que com uma mente limpa, e três ou quatro vídeos do apocalipse na Palestina, pode-se garantir com cem por cento de acerto que se trata de uma mentira.
Nem mesmo os termos adequados para tratar os crimes de guerra na Palestina têm sido usados adequadamente, em diferentes parlamentos do mundo. A colunista do The Washigton Post Jennifer Rubin escreveu que “quanto mais perto se olha, mais Netanyahu se parece com Trump”, no pior sentido. O artigo afirma que “cerca de oitenta por cento dos israelenses culpam o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu governo de coalizão pela catástrofe do Hamas, de acordo com uma pesquisa do jornal hebraico Maariv”.
No Brasil, a deputada que nasceu para jumenta e jamais chegará a égua Carla Zambelli publicou a imagem de uma águia estadunidense e israelense sobre um rato palestino. Estou persuadido por mim mesmo a não esperar que esse projeto de pessoa seja capaz de compreender o tamanho da própria bestialidade.
Diante de listas nominais de milhares de civis mortos por Israel, a resposta do “mundo” é tão fraca, lânguida, frouxa. Quem sabe seja o momento desta consciência: somos incapazes de impedir a violência pelo mero conhecimento de que a violência existe. Estou avisando você agora: nas próximas horas, crianças palestinas vão ser brutalmente assassinadas, ou mutiladas, e as que sobreviverem terão visto suas famílias e amigos explodirem. Saber disso não muda absolutamente nada.
Há algumas horas, um menino palestino foi buscar uma bola, quando houve um bombardeio bem atrás dele. As costas de seu sobrinho foram feridas. Mas o sobrinho está melhor que Saleh al Qaraan, que teve a cabeça desfeita na explosão.
Acostumado a encontrar posts com animais no Instagram todos os dias, vi um gatinho malhado pular no colo de palestino, no qual repousava o corpo pálido de uma criança morta. O gatinho se aninhou, e fechou os olhos. Sem contar a mãe que, com o bebê morto embrulhado em pano branco, recusava-se a parar de beijá-lo. Ou ainda os incontáveis vídeos de crianças em ataques de pânico dentro de hospitais.
Na dimensão individual, meu trabalho ou o seu contra a guerra e nada parecem bastante. Não podemos contar, pelo menos não agora, que a prudência dos sábios consiga uma hora na agenda dos líderes do mundo. Mas defender os civis palestinos ou não, agora, em toda e qualquer oportunidade, diz sobre o que aprendemos sobre nossa maldade.
Reflexão inquietante sobre a tragédia palestina, o papel da comunidade internacional e os limites morais da humanidade.
Um tempo atrás, procurei pela Palestina no Google Maps, e a encontrei no meio do oceano. À época, concluí que o mundo tinha terminado, pelo menos um projeto de mundo, ao encontrar um povo que tanto me ama e é amado por mim afogado no ódio em que alguém em algum lugar o afogou.
Hoje, depois do assassinato de centenas (o número é impreciso, mas impressionante) de palestinos que estavam em um hospital, eu me dei conta de que o mundo terminou para eles, que o apocalipse, o fim dos tempos, chegou para aqueles humanos. Viram a vergonha, a fome, e morreram.
Imagine comigo. De repente, uma autoridade estrangeira ordena que você saia da sua casa. Ao fugir sem carregar nada, sua jornada é de sede e fome. Depois, veem-se escombros, poeira, amigos e família estirados no chão, uns decepados, outros sem sepultura. Então você também morre.
Se isso, que é verdadeiro, não torna também verdadeiro que chegamos ao fim do mundo, então o que viria a ser o fim do mundo? Desastres naturais, por piores que sejam, pelo menos são honrosos. Ninguém poderá culpar o vulcão. Genocídio com apoio de grupos religiosos é fim do mundo.
A postura da comunidade internacional é insuficiente. A humanidade está demasiadamente paralisada na reação às guerras, os poderosos não são verdadeiramente poderosos. Não passam de homens do mercado! E de um mercado de almas, descrito lá no Apocalipse de João.