O Papa que se despede enfrentou tsunamis de ódio, e deixou lições amorosas. Seus conselhos foram breves e profundos.
Carta íntima de Sgarbe explora angústia existencial, memórias de luto e a busca por sentido em meio à dor.
Porteiras gripadas, caminhos guiados por pinheiros impávidos, silêncios tão ambíguos e uma lua fria. Cheguei ao Limoeiro seis anos depois da primeira visita, quase sem lembrar de quanto esse deslocamento é capaz de me acolher para me colher.
Perdi a conta das palavras que deixaram de me expressar nesses anos. Passaram-se tantos anos desde a enorme prevenção que era me garantir com palavras. Hoje, não me garanto com nada. Um certo correr por fora de todas as coisas vai me dando a sensação de que me mantenho vivo, e com alguma pulsação fora do corpo. Mas sempre daquele jeito.
Chove bastante, todas as janelas escorrem daquele jeito, meio triste, meio brega. Estou sem sinal para garantir o trânsito de minhas epifanias ridículas. Aliás, o ridículo, o cruzar o ridículo tem sido um tema em particular. Deus falou comigo sobre isso no começo da semana, fazendo um seguro comigo.
Sempre vivendo escondido, amando escondido, como se a minha natureza não fosse apropriada. Ora. Como pode a natureza não ser apropriada, se natural, se natureza. Essa constante, imutável, invencível luta contra a permanece condição havia chegado ao fim. Foi quando me dei conta de que tantas convicções tinham chegado ao fim. A luta por si mesma era uma engenharia para a vida, era algo ao qual eu tinha me agarrado para viver e que agora tinha se desmontado feito uma carroça velha. Era possível ouvir o barulho das peças se amontoando umas sobre as outras na irrecuperável sinfonia da calamidade. Tinha chegado ali a hora de morrer em definitivo para aquelas expectativas falsas de transformar o mundo ou o mundo dentro de mim. Eu estava cansado em definitivo, tinha concluído que um plano para morrer a carne seria mais útil que um plano para viver a alma – muito embora tentativas anteriores de tanto um coisa quanto da outra tivessem falhado antes, agora, um tipo de resignação sobre a vida e determinação sobre a morte me seguiam continuamente. Eu estava disposto a colocar um fim em tudo aquilo, como de fato o fiz.
Aos 30 anos, a realidade tinha se demonstrado assustadoramente dura para mim, porque qualquer devaneio malsucedido traria consequências terríveis. Era preciso pensar doentiamente com foco na destruição completa, sem que as estruturas do entorno fossem prejudicadas. Um tipo de implosão. Difícil de acontecer quando se é um executivo de comunicação e correspondente do noticiário internacional. Ter pensado nesse texto em uma fantasia autobiográfica, testemunhal, fez cair drasticamente a qualidade dramática deste relato. Em vez de relatar a flagrante angústia destes dias, fiz o que estava apegado a fazer nas últimas horas, contar títulos e afazeres a fim de esquecer as principais razões. Aliás, é atrás delas que me arremessei frente a todas as misérias que me vesti, que me alimentei, que passei a noite. Atrás das razões é que estive maior e menor, é que estou agora. Atrás de uma razão é que morri. Minha mente se perturbou quando finalmente deitou na cama, viu-se novamente sozinha, lembrou que pretendia escrever um pouco antes de morrer. Lembrou que o desejo que tem é de morrer. Que a morte está à espreita e Deus observa de perto, guarda, salva, uma hora dará um sinal. Ontem ou hoje, repetiu, uma resposta está a caminho.
A resposta me encontrará prostrado. Mesmo segurando no braço do Eterno, sinto a demora no levantar. Senti saudade do dia em que me chamaram de mulher. Em que me fizeram sentir que eu era outra coisa que não essa aqui. Não esconderei nada do Eterno, esse é meu acordo com ele, assim ele manterá um novo trato comigo. Ao mesmo tempo, isso me devasta, silencia cada sinal que eu possa emitir. Poe-me morto. Põe-me, sobretudo, com vontade de morrer.
Voltou a angústia, mas transformada. Analisada, penteada, limpa, de cara limpa. Antes se apresentava embriagada, de pernas trançando e sugerindo ininteligências. Agora vem só, feito uma viúva sóbria na manhã do enterro, sem máscaras.
Era necessário localizar aquilo tudo, uma vez que as principais prisões estavam estabelecidas. Quero dizer, o tempo estava estabelecido, a condição mais irreversíveis, mais estável – preocupantemente, mais preocupantemente estável – estava estabelecida. Então as normas de descrição se aplicavam de dentro para fora, de cima para baixo. Era possível ver a professora de português em pé, em minha frente, gesticulando lentamente, no esforço de me tornar um redator menos estúpido na hora de desenhar a localização exata da minha tristeza. Ela certamente teria alguma compaixão por mim, boa que era, ao descobrir que fui engolido pela mediocridade das tentativas mais simples, e que quase não arrisquei para dizer que o coração da minha tragédia pulsava de um beijo roubado.
Ainda não tinha me dado conta de em que pé estava minha recuperação, ou se havia ainda alguma recuperação rolando. Aliás, termos como esse, recuperação, eram os últimos que me interessavam. Tantas recaídas – aliás, uma sucessão tão amarga, recorrente e fatigante que me tinha deixado à morte – tinham-me tirado qualquer perspectiva de que eu ainda vivia para viver. Era como se eu estivesse jogando para cumprir a tabela sabendo do rebaixamento iminente. Nunca gostei de futebol e não faço a menor ideia de por que fiz essa analogia pobre com um esporte que não me interessa em nada.
Do dia em que enterrei tia Josmara lembro de poucos detalhes. Tinha mantido pouca coisa no primeiro plano, para que a superficialidade fosse aquele tipo muito apropriado de anestesia. Era o jeito de aguentar um funeral católico. Inicialmente, tentei evitar minha ida, mas as obrigações cívicas me tiraram da cama perto das três da manhã. A voz do meu irmão rasgou a noite fria dizendo com uma euforia de manchete “a tia Josmara morreu”. Que sorte a minha não ter o destino dela, o de estar sem ninguém que a amasse naquele momento. Levantamos da cama e fizemos um memorial, uma foto e velas de festa boiando sobre a água rasa e lenta de uma decoração. Teria sido suficiente aquela macumba. Mas era preciso, não por mim, mas pela vida dos outros, que eu sofresse publicamente. Não passou muito tempo até que meu pai passasse de carro me pegar. Ele não quis ir comigo. Então, o caixão dela se arrastou no chão da cova, fazendo um som pesado, o último do corpo inerte. Madeira esfregando sobre cimento, terra, areia. Então eu aprendi qual o som da morte.
Leia insights sobre a interação de humanos com modelos de linguagem de IA, e sobre os ODS no Brasil. Lab Educação 2050 Ltda, que mantém este site, é signatária do Pacto Global das Nações Unidas.
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O Papa que se despede enfrentou tsunamis de ódio, e deixou lições amorosas. Seus conselhos foram breves e profundos.
Francisco foi um excelente pai para a Igreja. Chamo-o assim, pelo primeiro e único nome, porque deixou em seu testamento que deveria ser a inscrição em seu túmulo: “Franciscus”.
Escrito na metade de 2022, o texto oferece o “sofrimento que esteve presente na última parte” da vida do Papa ao “Senhor, pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos”. Infere‑se que, desde então, a despedida esteve em suas preocupações.
É coerente sentir estranheza diante de um líder que telefonava para o pároco de Gaza, e que não se esquivou de pedir o desarmamento e o fim da guerra. Naquilo que chamava de “globalização da indiferença”, os homens passaram a consumir os horrores da natureza violenta sem tomar qualquer providência.
Certamente ele foi atingido pelos tsunamis de ódio que cobriram a comunidade humana nos últimos anos. Nesse sentido, nunca vi tanto descompasso entre católicos. Porém, não me surpreende em nada. Afinal, quem não está perdido?
O riso de Francisco vai fazer muita falta. Seu jeito simples de oferecer conselhos, e de ensinar a dar conselhos. Para ele, um sermão não deveria passar de oito minutos. Que respeito aos ouvidos, e ao tempo dos outros! “O senso de humor é um certificado de sanidade”, defendeu.
Pergunta-se, com razoável preocupação, o quanto as lições de caridade ensinadas por ele estão aprendidas, quanto internalizadas. Para que nenhuma geada queime a lavoura de novos cristãos, os cardeais têm agora o trabalho de escolher um Papa que nos ame.
Uns dias antes de morrer, no fim do ano passado, meu avô Jorge ouviu Ravel comigo. Dedico essa memória.
Reflexão provocativa relaciona comunicação, espiritualidade e ruído como caminho para clareza e entendimento.
Falho repetidamente. Agora mesmo, falhei no propósito de ir para a cama às 21h30. Por alguma razão parecida com “puta que pariu! Eu não durmo mais que quatro horas mesmo”, entreguei-me à deriva da escuridão.
Temo que uma autoridade severa chore para me disciplinar: “não é hora de ir ao banheiro”. Atividades em geral. Os chats da madrugada chegaram ao fim, cobertos de areia, desintegrados por um choque, incinerados. Dá aquele dózinho. Toda aquela literatura caótica que me trouxe tantos amigos enlouqueceu, e fala sozinha nos posts do Mark.
O livro que Maku me enviou é bem escrito, claro, mas é lido em supercâmera lenta. A personagem começa a se revelar a partir da vontade de morrer. Não se encontra gente honesta assim com facilidade. Como torradas com cream cheese e geleia de frutas vermelhas. Foi a caixa, o pote. Troquei por nata. Nata não tem erro.
Esse fractal, então: a morte e a vida se explicando pouco, falando rápido e alto, tal qual turistas brasileiras de batom vermelho e bolsas tiracolo encantando o mundo com uma malcriação sorridente. Minha análise, a seguir, é sofisticada.
Há desafinações da vida que são, é preciso repetir, forças da natureza. Desafinações, neste texto, são metaforicamente Meryl Streep interpretando Florence Foster Jenkins no cinema, ou qualquer instrumento que deveria vibrar um sublime “ooowooowooow”, mas acaba por materializar a Vó Jephinha se aventurando fora do tom, sem melodia.
Gosto da água porque ela não perde tempo com pedra ou muro; desvia, aceita um bom túnel, mas, se precisar, arrebenta com tudo. A água toma para si terrenos que nem vocação para piscina tinham, repousando ali uma inundação calamitosa.
As regiões do mundo que estão para desaparecer precisam de suporte intelectual para resolver questões de propriedade, repatriação e o retorno de burocracias previsíveis. Não se pode erguer uma ilha na parte de cima de um sobrado; nem mesmo catedrais japonesas de drenagem fazem diferença no oceano. Perigos assim equiparam nossa inteligência a nada. A natureza é uma das três fontes notáveis de desprazer na psicanálise freudiana.
“E de todo esse instrumento desafinado eu nunca fui aprendiz.” Há esse verso numa letra de Gabrielle Seraine. E na música dela também, quando se canta “[desa]finado”, quando se canta exatamente “finado”, a harmonia se despedaça por um instante, como uma criança filha da puta assoprando uma flauta de plástico. É o vale antes do topo, o “dark before the dawn”.
Quando o indivíduo desafinado — o “médium” (de mídia, não de falar com mortos) — emite ruídos, a comunicação fica mais nítida. Vamos usar a palavra “comunicação” como um sinônimo futuro para “espírito”, uma belíssima concepção de Flusser.
Nas religiões que lidam com “espíritos”, note-se a similaridade na condução das intenções: portas são abertas e fechadas, pessoas são estimuladas a movimentar a psique, e até mesmo pedidos banais que não passam de burocracias previsíveis. Pede-se, promete-se, agradece-se, expulsa-se, infunde-se — tudo pela conjuração de palavras humanas e inteligíveis.
Aceitar a Jesus, renunciar à maçonaria, declarar a vitória, tomar posse da bênção, fazer macumba para a Dona Ida morrer (criança é muito inventiva) — tudo isso requer falar. Do feitiço do Pai Grego à corrente de oração Sete Batidas na Porta da Graça do pessoal da Janine. Comunicação. Fala. Escuta.
Em alguns cultos evangélicos, diante de uma comunicação insatisfatória, é provável que alguém passe a fazer o papel de endemoniado em favor do grupo. A missa católica tem tantos recursos de comunicação que uma parte do sermão acaba guardada.
Os “espíritos” são assunto antigo, primitivo. Foi o jeito de manter os mortos por perto. Depois, esses mortos viraram demônios. A história registra em termos antropológicos; tenho aqui um original do Frazer que ganhei de Luca. Meu ponto é: se os espíritos “nascem” de mortos domésticos, é natural que, antes de se comprometerem com eventos fora de casa — falando em reuniões espíritas, fazendo vento — estejam disponíveis no inventário da família.
Há poder na psicanálise, na Análise Transacional, nos Narcóticos Anônimos. Mas esses empreendimentos precisam de muito mais tempo, especialização e oportunidades para erros do que se pode alcançar em família, quando uma família está disponível. Família, claro, entenda-se amplamente.
Uma família que tenha compreendido a perenidade do amor, que tenha deixado as lutas por reconhecimento para práticas comunitárias, tem mais chances de sucesso na invocação de espíritos poderosos.
O poderoso espírito do criador, para aqueles que creem assim, tem de fazer alguma diferença. Deus está morto? Não se engane. Escrevo sobre comunicação. Sobre conjurar, invocar, boa comunicação. Na última linha do ruído, “tomar posse da bênção”, como bem observado por Nina.
Em português, “espíritos” são comunicação pelo menos desde 1976, quando Cartola compôs: “De cada morto herdará só o cinismo”. A partir do meu tensionamento, Flusser nos oferece uma simplificação: é muita “batalha espiritual” para pouco “conversar igual gente”.
Voltemos. A relação do desafinado, do finado — propriamente a palavra em questão, ruído, essa coisa que perturba o sono — com a nitidez não é somente poesia. A física e a engenharia de computação que sustentam a geração de imagens procedem da utilização de duas etapas bem básicas que não prejudicam uma à outra.
Para melhorar a pele de alguém em uma fotografia, é preciso primeiro o carinho do embaçar, como um hipermetrope sem óculos. Depois, tem de adicionar ruído, algo parecido com a TV antiga sem sinal. E então se pode ver melhor.
Assim, minha sugestão para o grupo — risos — é uma apreciação do ruído, junto a uma observação atenta dos conteúdos das perturbações. Quando acabar essa pilha, com mais nitidez, sejamos arrogantes em nossas pretenções de dignidade,
Só que eu ia escrever sobre algo completamente diferente. Vou fazer outro post.